terça-feira, 10 de janeiro de 2012

MISTÉRIO


Marcas misteriosas sobre solo amazônico
O que há por trás das enormes formas geométricas encontradas nas últimas três décadas no Sul do Amazonas e em estados vizinhos, como Acre e Rondônia? Essa pergunta impulsiona a Ciência na busca por conhecer os ancestrais amazônicos, o que fizeram e como ocuparam a região. Um trabalho que ganha maior agilidade com a tecnologia espacial, mas que ainda carece de investimentos e mão de obra.
Os quadrados, círculos e retângulos descobertos sobre o solo são chamados de geoglifos. O nome vem do latim: ‘geo’ = terra, e ‘glifo’ = desenho. As primeiras estruturas foram conhecidas ainda na década de 70, no Acre, mas vieram a ser estudados somente nos anos 80, pelo pesquisador Ondemar Dias, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ainda pelo Programa Nacional de Pesquisas Arqueologias da Bacia Amazônica (Pronapaba).
No Amazonas, arqueólogos já localizaram cerca de 20 geoglifos no município de Boca do Acre (a 1.028 quilômetros de Manaus). Para isso, os pesquisadores tiveram uma grande aliada: a Internet. Além de sobrevoar a região, eles usaram as imagens de satélite do Google Earth para encontrar as marcas, que variam de 50m a 380m de circunferência.
Ainda não é possível afirmar quais povos construíram os geoglifos, mas o coordenador do curso de arqueologia da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), professor Bruno Moraes, acredita que foram grupos socialmente evoluídos. “Duas pessoas não são capazes de construir um geoglifo, mas talvez 2 mil sim. Para mobilizar esse número, é preciso uma liderança política, alguém que represente um capital simbólico. E isso está presente em sociedades ditas mais organizadas”, explica.
De forma geral, os geoglifos puderam ser vistos somente devido ao desmatamento em Boca do Acre, município que tem um dos maiores índices de degradação ambiental do Estado. Com a derrubada das árvores, as formas, antes escondidas pela floresta, vieram à tona. Outras centenas podem continuar guardadas sob a copa da mata. Agora, cientistas estudam dados paleobotânicos para confirmar a teoria de que essas mesmas estruturas teriam sido construídas em uma época onde a vegetação fosse aberta, com poucas árvores. Um cenário bastante diferente do que hoje é a densa floresta amazônica.
Para Moraes, outra teoria reforçada pelos estudos dos geoglifos está relacionada à densidade demográfica da região. “A Amazônia tem, não só grandes sítios arqueológicos, mas um número imenso desses sítios. Tudo nos leva a crer que a população de 800 anos atrás pode ser maior que a população de hoje. Esses 3 milhões que hoje habitam o estado do Amazonas, há 800 anos atrás, poderiam ser 5 milhões pessoas, distribuídas pelo território”.
Onde, quando e como
Os geoglifos nos estados da Amazônia são similares. No Amazonas, eles são predominantemente quadrangulares. “Não sabemos se a forma tem algo a ver com o grupo que construiu, mas é uma possibilidade”, declara a pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e ex-presidente da Sociedade Nacional de Arqueologia (SNA), Denise Schaan. Ela, uma das autoras do livro Geoglifos – Paisagens da Amazônia Ocidental, acredita que as estruturas em ambos os Estados foram feitos por povos aparentados ou grupos étnicos que compartilhavam uma mesma religião ou crença.
A maioria dos geoglifos seria datada entre 2.000 e 1.000 anos atrás e estão, em sua maioria, localizados junto a nascentes de água de boa qualidade. Estudos conjuntos entre pesquisadores de universidades do Norte do País apostam que seriam necessários de três a seis meses para construir cada forma geométrica. Um trabalho feito por grupos de 100 a 500 trabalhadores.
Sobre a tecnologia usada em empreitadas como essa arqueólogos criaram hipóteses de técnicas usadas por esses indígenas para produzir os ângulos perfeitos, encontrados em vários geoglifos. Para eles, os círculos seriam construídos com a ajuda de um compasso humano feito de cipó. Já os quadrados e retângulos, podem ser feitos a partir do traçado de perpendiculares. “Isso comprova que eles já dominavam os princípios básicos da geometria”, confirma a especialista.
Afinal, o que significam os geoglifos?
As pesquisas sobre as formas geométricas amazônicas ainda não comprovaram a verdadeira função dos geoglifos. Para Bruno Moraes, por exemplo, as estruturas de terra serviriam como domínio simbólico das áreas. Já Denise Schaan supõe que seriam locais de encontro, de realização de festas e/ou cerimônias religiosas. Anteriormente, chegou-se a cogitar que essas valetas circundariam aldeias, mas a falta de evidências para moradias na parte interna das formas derrubou esta hipótese inicial.
Proteção
Entender mais dos geoglifos requer a preservação dos mesmos. No Amazonas, no entanto, essa tarefa enfrenta dois desafios. O primeiro deles é guardar os sítios arqueológicos do traçado da BR-317. A rodovia federal, que liga o Estado ao Acre, cortou estruturas em solo acreano e ameaçava “ferir” sítios também no Amazonas.
Em agosto do ano passado, o Ministério Público Federal no Amazonas entrou com ação contra as obras da BR-317. A Procuradoria, a pedido do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), pedia a paralisação da construção dos 110,7 quilômetros da estrada entre a cidade de Boca do Acre e a divisa do Estado do Acre. ”O processo, hoje no Iphan, tem implicações até de alteração do traçado dessa estrada para que não afetasse esses testemunhos arqueológicos [geoglifos]”, conta o superintendente do Iphan no Amazonas, professor Sergio Ivan Gil Braga.
À época, a procuradora da República, Luciana Portal Gadelha, defendeu a ação pelo grave risco à integridade cultural dos povos indígenas. Entre os anos de 2002 e 2008, foram instaurados no MPF/AM quatro processos administrativos para apurar possíveis irregularidades perpetradas por órgãos do poder público e para avaliar os impactos socioambientais gerados pela pavimentação da BR-317. “A interferência em um geoglifo é irreversível. E isso implica na apuração de responsabilidades”, completa Braga.
Outra deficiência para um maior conhecimento desses sítios arqueológicos é a falta de pesquisadores no Estado. A UEA é a única instituição de nível superior no Amazonas que possui um curso de arqueologia. A primeira turma começou em 2009 e deve se formar no final de 2012. “A falta de profissionais prejudica. Por isso estamos preparando mão de obra local. Quanto mais pesquisas, mais nos aprofundaremos no assunto. Quanto menos, a degradação se torna inevitável”, diz Bruno Moraes.
E preservar essas riquezas arqueológicas representa inúmeros benefícios à sociedade. De acordo com o Gabinete de Comunicação da Prefeitura de Boca do Acre, não é descartada a ideia de usar os geoglifos como potencial turístico. Uma ideia apoiada pelo Iphan. “É possível conferir valor a esses sítios, como já acontece com outros, a nível internacional. Para isso, é requerido apenas proteger os geoglifos e educar sobre a importância deles”, afirma o superintendente do Instituto.
Além disso, os especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes quanto a importância destes sítios no processo de análise da ocupação da Amazônia. “Nos interessa conhecer quem eram essas populações, como viviam, quantos eram, como chegaram ali e saíram dali. Se há um sítio onde não há indígenas, significa que houve um processo de abandono. E isso é importante para tentarmos entender não só como a Amazônia foi ocupada e há quanto tempo, mas como a América foi ocupada. Essa é uma grande questão que ainda não tem uma resposta”, finaliza Bruno Moraes.



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